Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles, é mais do que um filme sobre a ditadura militar brasileira. É um retrato íntimo e devastador de uma família atravessada pela violência do regime e, ao mesmo tempo, um lembrete da importância da memória coletiva.
Inspirado no livro de Marcelo Rubens Paiva, a obra se equilibra entre a reconstrução de uma época e a complexidade emocional de seus personagens, especialmente de Eunice Paiva, vivida magistralmente por Fernanda Torres.
O filme abre com uma atmosfera de aparente serenidade: uma família carioca cercada por amor, afeto e pequenos prazeres do cotidiano. No entanto, a prisão de Rubens Paiva (Selton Mello) dissolve esse cenário, mergulhando os personagens em um estado de luto sem respostas.
A direção de Walter Salles retrata essa transição com habilidade técnica e sensibilidade, usando o contraste visual entre o calor dos momentos iniciais e a escuridão literal e simbólica que domina a narrativa após o desaparecimento de Rubens. A casa, tem um papel central no filme, na primeira parte é vívida, cheia de vida, ocupada em todos os cantos. Quando Rubens desaparece, a casa fica escura, perde a cor, ganha espaços vazios e a saudade ocupa os móveis da casa.
O peso da memória e da ausência
O longa escolhe abordar a violência da ditadura de maneira indireta. Ao invés de cenas explícitas de tortura, Salles se concentra nas consequências psicológicas e sociais para os que ficaram. A ausência de Rubens é palpável em cada cena, não apenas como uma falta, mas como uma presença opressora que molda as escolhas, ações e pensamentos de Eunice e seus filhos.
A ausência de respostas torna o luto interminável. Quando é o momento de parar de esperar por alguém que nunca voltará? Como enterrar um ente querido quando nem ao menos há um corpo? Essas perguntas, exploradas através dos silêncios, olhares e interações da família, são o coração do filme. A cena em que a filha caçula pergunta “Quando você o enterrou?” sintetiza o peso insuportável da incerteza que domina a vida dos Paiva.
Fernanda Torres e o retrato da resiliência feminina
O centro emocional de Ainda Estou Aqui é, sem dúvida, Eunice Paiva. Fernanda Torres entrega uma performance notável, equilibrando fragilidade e força em uma personagem que não tem escolha senão de se reinventar para proteger seus filhos e lutar por respostas. Seu retrato de Eunice é de uma mulher que sofre, mas nunca cede, que esconde suas dores mais profundas para oferecer segurança a seus filhos em meio ao caos. Uma atuação física, que mora no olhar duro, mas com certa leveza no movimento.
Torres evita o melodrama, construindo uma personagem profundamente humana. Sua atuação é complementada por um elenco afinado, especialmente Selton Mello como Rubens Paiva, que esbanja simpatia como um pai presente e bonachão, querido pelos filhos, esposas e amigos. E os jovens atores que interpretam os filhos do casal reforçam o sentimento de perda que permeia o restante da narrativa.
A reconstrução histórica e suas limitações
Do ponto de vista técnico, Ainda Estou Aqui é impecável. A direção de arte de Carlos Conti recria com precisão o Rio de Janeiro dos anos 1970, enquanto a fotografia de Adrian Teijido alterna entre o calor ensolarado do início e a penumbra dos momentos mais sombrios. A trilha sonora, com músicas de Roberto Carlos, Tom Zé, Tim Maia, Os Mutantes, Caetano Veloso, reforça a ambientação temporal e emocional. E para a minha grata surpresa, Warren Ellis, parceiro de Nick Cave, é quem cuida da composição da trilha sonora do filme.
No entanto, alguns aspectos da narrativa são menos explorados, o ato final, que avança para 1996 e 2014, é tratado de forma apressada, oferecendo um vislumbre breve da luta de Eunice por justiça, mas sem o mesmo impacto emocional do restante da obra.
Mas nos entrega uma performance incrível e sem palavras para defini-la, de Fernanda Montenegro. Ela dá continuidade da atuação de sua filha, no olhar, na presença física. Apenas uma atriz do seu porte, que carrega tantos personagens dentro de si, poderia entregar o que ela faz magistralmente.
Memória, resistência e atualidade
Ainda Estou Aqui é uma obra essencial para o cinema brasileiro. Não apenas pelo retrato íntimo e respeitoso de uma família devastada pela ditadura, mas também pelo que representa no contexto atual. Em tempos de revisionismo histórico e negacionismo, o filme de Walter Salles é um lembrete poderoso de que a luta pela memória e pela verdade nunca deve cessar.
Ao terminar com a figura de Eunice mais velha, interpretada por Fernanda Montenegro, o filme reforça sua mensagem de resistência. A memória, afinal, não é apenas uma recordação, mas um ato político. E Ainda Estou Aqui é, sem dúvida, um grito necessário para que nunca esqueçamos o preço da liberdade.
Apoie o LiteroBalões
Indique a newsletter LiteroBalões para seus amigos, inimigos, seguidores e até para o grupo da família no WhatsApp. Toda semana teremos novidades!
Compre na Amazon através do nosso link de Associado, você não paga a mais por isso!
Obrigado!