Crítica | O Sistema, de Peter Kuper
O Sistema é f0d@, parça! Peter Kuper constrói uma narrativa poderosa sem nenhuma palavra.
Quadrinhos mudos têm um desafio único: contar uma história sem uma única linha de diálogo e, ainda assim, fazer com que cada página fale alto ao leitor. O Sistema, de Peter Kuper, não só cumpre essa missão como transforma o caos urbano em narrativa, nos conduzindo por uma Nova York efervescente, corrupta, brutal e interconectada.
Originalmente publicado em 1996 pelo selo Vertigo Vérité, da DC Comics, e relançado no Brasil pela Editora Monstra, o quadrinho retrata a cidade como um organismo vivo — pulsante e opressor — onde vidas se cruzam em um emaranhado de crimes, desigualdade, violência e rotina.
O caos urbano como protagonista
O que faz O Sistema ser tão impactante é sua capacidade de capturar a essência de uma grande metrópole. Nova York, aqui, não é apenas o cenário, mas um personagem por si só. Seus becos grafitados, vagões de metrô lotados, escritórios luxuosos e esquinas movimentadas servem de palco para dezenas de histórias interligadas. Um assassinato, um policial corrupto, um jovem negro sendo perseguido injustamente, um morador de rua e seu cachorro, um grafiteiro rebelde, uma stripper em perigo, um taxista imigrante. Todos estão inseridos nesse ecossistema sufocante, onde a cidade dita as regras e ninguém vive isolado — todos se esbarram, para o bem ou para o mal.
A conexão entre essas tramas não é óbvia no começo. A narrativa fragmentada segue diferentes personagens, como peças de um quebra-cabeça. Mas, conforme avançamos, percebemos como suas histórias se encaixam. Pequenos acontecimentos se transformam em ondas de choque que reverberam de um lado para o outro, mostrando como o tal "sistema" do título funciona na prática.
Crítica social sem precisar de palavras
A maior força de O Sistema está na sua crítica social afiada. Peter Kuper expõe um retrato sem retoques do capitalismo e da desigualdade urbana. A presença constante do dinheiro nos quadros — notas trocando de mãos, cifras na tela da bolsa de valores, gorjetas caindo sobre balcões — reforça como cada interação humana dentro desse sistema está atrelada ao capital. Empresas gigantes, como a fictícia Syco, representam o poder econômico, enquanto a disputa presidencial entre um republicano conservador e um candidato progressista mostra como as engrenagens políticas interferem em tudo.
Sem diálogos, Kuper deixa que as ações falem por si. O preconceito racial, por exemplo, está presente na história de Yusuf Stewart, um jovem negro que sofre as consequências cruéis de um sistema que já determinou seu destino. A violência policial é escancarada sem precisar de uma única palavra. O quadrinho também aborda corrupção, tráfico, gentrificação e o poder destrutivo das corporações, sempre entrelaçando esses temas com histórias pessoais.
A ausência de balões de fala poderia ser um desafio, mas Kuper o transforma em um dos maiores trunfos da HQ. Sua narrativa visual é tão fluida e bem pensada que não sentimos falta do texto. Ele usa transições inteligentes, enquadramentos dinâmicos e mudanças de perspectiva para guiar nossos olhos pelas páginas e garantir que cada ação tenha impacto.
Além disso, sua técnica artística é um espetáculo à parte. Ele começa os desenhos com stencil e spray, criando um efeito texturizado que remete ao grafite e ao caos urbano. Depois, complementa as ilustrações com lápis de cor, aquarela e colagem, resultando em uma arte vibrante e expressiva. Cada página poderia facilmente estar exposta em uma galeria.
A edição da Editora Monstra faz jus ao material. No tamanho 32 x 23,5 cm, proporciona uma leitura que valoriza os detalhes da arte. Os extras explicam o processo criativo de Kuper e a tradução dos letreiros — placas, jornais, grafites — enriquece a experiência do leitor brasileiro.
O Sistema continua o mesmo?
Originalmente publicado nos anos 1990, O Sistema poderia parecer um retrato datado de uma Nova York que já não existe. Mas a verdade é que os problemas da metrópole de Kuper continuam sendo os mesmos de hoje — nos Estados Unidos e no resto do mundo. Mudaram os aparelhos tecnológicos, os arranha-céus ficaram mais altos, mas as engrenagens que movem a cidade ainda são as mesmas: desigualdade, opressão, consumismo e violência.
Essa atemporalidade é o que torna O Sistema tão essencial. Peter Kuper nos mostra que, apesar dos avanços tecnológicos, a lógica do sistema permanece inalterada. Suas páginas nos fazem refletir sobre o mundo ao nosso redor e, principalmente, sobre a maneira como nossas vidas se cruzam e são afetadas por forças que nem sempre controlamos.
O Sistema não é apenas uma HQ; é um manifesto visual sobre a vida urbana e suas contradições. Kuper transforma Nova York em um organismo cruel e hipnotizante, nos envolvendo em sua teia de relações interconectadas. A ausência de diálogos nos força a olhar para cada detalhe e interpretar o que acontece nas entrelinhas, tornando a experiência ainda mais imersiva.
Se você busca um quadrinho que vai além do entretenimento e provoca reflexão, O Sistema é leitura obrigatória. Uma obra-prima da narrativa visual, um soco no estômago que ressoa mesmo depois de fecharmos o livro.